AS DIFICULDADES DO FUTEBOL BRASILEIRO COM O ESQUEMA DA MODA

04/02/2013 13:01

 

Nosso amigo do Grupo Discussão Tática Leonardo Miranda fez ótimo texto para seu blog abordando os preceitos do 4-2-3-1, o que suscitou uma discussão interessante sobre o futebol brasileiro e os dogmas táticos do 4-2-3-1. Comentando com os amigos, surgiu a vontade de escrever esse texto explicando, em minha opinião, as duas maiores dificuldades do futebol brasileiro, e da nossa Seleção, em adaptar-se ao esquema da moda.

Vislumbro que o maior problema é cultural. Como sabido, o 4-2-3-1 nasceu do 4-4-2 britânico, esquema que usa wingers pelos lados do meio campo e dois box-to-box no centro, além de dois atacantes fixos. E a nossa cultura tática não coaduna com esses dogmas do 4-4-2 britânico. Nosso 4-2-2-2, advindo do falecimento do 4-3-3, e base tática do nosso futebol até a data de hoje, não tem nada em comum com o esquema da terra da Rainha, a não ser a linha de quatro na defesa.

Por esses motivos históricos, nossa aplicação tática do 4-2-3-1 é reconhecidamente deturpada. Nessa toada André Rocha, quase sempre, vislumbra nas equipes brasileiras um uso “torto” do 4-2-3-1. Isso demonstra a aplicação estratégica que nosso futebol “importa” ao importado esquema: nosso 4-2-3-1 tem dinâmica de 4-2-2-2. Como dito, fruto da nossa cultura tática, de nosso apego pelo meia central, pelo camisa nove e pelo atacante aberto, resquício da antiga função de ponta.

Primeiro grande problema: as beiradas do campo. Como sempre muito bem lembrado por Raniery Medeiros, temos dificuldades de aplicarmos o esquema da moda por não termos em nosso futebol wingers de qualidade. E não temos. Não faz parte da nossa tradição futebolística. Tínhamos pontas que, quando abolidos com a supressão do 4-3-3, foram substituídos pelos avanços dos laterais, sendo estes guarnecidos por carregadores de piano pelo meio. Outro traço da nossa cultura tática: uns marcam para os craques decidirem.

Na Europa, o cenário é totalmente diferente. Sempre tiveram costume de jogar com meias abertos, muitas partes do continente tem o 4-4-2 britânico como base tática, o que facilitou o uso eficaz e eficiente do 4-2-3-1. Aqui temos dificuldades e vamos tentando compensar taticamente. A intenção é aproveitar a completa composição de espaços do referido esquema. Não à toa, vemos dificuldades da Seleção em adaptar-se ao 4-2-3-1 e que todos os avanços do esquema nascem na Europa.

O segundo problema é a nossa cultura tática no que tange à formação dos atletas centrais de meio campo. Na Inglaterra, os meio-campistas são formados tanto para defender quanto para atacar. Ensinados para atuar no 4-4-2 em linha ao lado dos wingers, os meias centrais atacam e defendem com a mesma intensidade. São conhecidos no futebol inglês como box-to-box (área a área em inglês). O site Doentes por Futebol, num texto sobre a posição, explicou com nitidez às atribuições do box-to-box:

 

- O box-to-box (“área a área” em inglês) atua fazendo tanto a função de volante quanto a de armador, indo e voltando o tempo todo entre as duas intermediárias. Um atributo muito importante para um box-to-box se sair bem na parte ofensiva é o chute de longa distância: jogadores como Lampard, Gerrard, Scholes e Carrick possuem bons chutes longos, podendo aproveitar as sobras na entrada da área ou mesmo bolas ajeitadas pelos atacantes, que fazem o papel de pivô. Como entre o box-to-box e o atacante não existe nenhum jogador especializado apenas em criação, é esse meio-campista que precisa arriscar mais os chutes de fora.

 

No Brasil, a formação dos volantes e meias de criação se dá de forma totalmente diferente. Como ensinado logo acima, até o final da década de 80 quem dava profundidade pelos flancos eram os pontas. Quando estes foram abolidos com o abandono do 4-3-3, a profundidade ficou a cargo do segundo atacante e dos laterais. Nessa toada, foi necessária a criação de uma cobertura mais efetiva, essencial para o sucesso do 4-2-2-2. Assim nascia o “brucutu”, o volante que só marca, conhecido no futebol argentino como volante de contenção. O segundo volante também marca bastante, visto que no quadrado os meias de criação jogam com mais liberdade. Mas, diferentemente do primeiro volante, costuma encostar-se aos homens de frente.

 

Cultura tática do futebol inglês e gênese do 4-2-3-1: Laterais mais contidos e habituados à marcação e, no meio, apenas duas funções: o winger (wing no inglês significa “asa”. Traduzindo a expressão da teoria tática britânica, seria o jogador que atua nas “asas do campo”, como ensinou Eduardo Papke Rocha no Grupo Discussão Tática do Facebook) e o box-to-box, jogador que ataca e defende na mesma intensidade entre as intermediárias. Na frente, dois atacantes para aproveitar os cruzamentos dos wingers e suas jogadas laterais. Quando um dos atacantes recuou para “tirar” um zagueiro da área, nasceu o 4-2-3-1.

 

 

Cultura tática do futebol brasileiro: com a extinção dos pontas, (antigos responsáveis pela profundidade), os laterais se tornaram apoiadores para, junto com o segundo atacante (que cai pelos dois lados), dar profundidade para a equipe. Na concepção clássica e imutável do 4-2-2-2, os meias de criação (tão famosos e sempre lembrados pelos saudosistas do futebol classe) possuem liberdade para atacar e poucas obrigações na transição defensiva. Para não sobrecarregar os zagueiros, foi necessário prender mais os volantes na defesa, nascendo o primeiro volante adstrito à marcação (o popular “brucutu”) e o segundo volante que tem no ataque a exceção de suas ações. A regra é a marcação. Juntando a cultura tática, com a mentalidade de liberar os craques somente para as ações ofensivas, nós formamos em nossas bases meias que não sabem defender e atacar na mesma intensidade e que não possuem costume de jogar pelos lados. Ou são formados para defender ou para serem criativos (o sonhado meia esquerda e sua mítica camisa 10). Assim, formamos volantes que não sabem sair jogando e jogadores criativos desabituados a marcar. Além da obediência tática não ser um traço tão forte da nossa cultura futebolística. 

 

 

Além das equipes usuárias, quase sempre “entortando” o esquema e obrigando os atletas a cumprirem funções dispares de suas características, percebam a dificuldade da Seleção em jogar no 4-2-3-1: o de Dunga era torto e obrigado a jogar no contragolpe para não ser frágil defensivamente. Mano tentou de várias formas copiar a execução européia e acabou sendo demitido. Isso porque não temos volantes acostumados ao ataque e meias atacantes que saibam marcar e compor os espaços pelos lados. Tudo isso influencia no uso do esquema, já não tão novo e pouco estudado por aqui.

Trago agora a opinião ilustre dos amigos Raul Chiliani, Leonardo Miranda e Raniery Medeiros sobre a temática. Participantes ativos do debate ocorrido no Grupo Discussão Tática sobre a aplicação do 4-2-3-1, cada um, abordando da sua maneira, fez um texto para o post, trazendo qualidade para o texto. Desde já, agradeço aos amigos.

 

- As categorias de base no Brasil são carentes de uma diretriz, uma linha de raciocínio na formação do atleta, a famosa “filosofia de trabalho”. Este ‘déficit’ nas categorias de base resulta na criação de jogadores sem propósito, limitados. Zagueiros que não conseguem fazer a saída de bola pelo chão, volantes incapazes de apoiar o ataque, laterais que deixam em suas costas verdadeiras avenidas, meias que não contribuem defensivamente, o atacante grosso, caneludo. Não formamos wingers, que são necessários para o 4-2-3-1, nem volantes capazes de marcar e sair para o jogo com eficiência. Logo, sem o material humano adequado, o esquema não é bem executado. Sem wingers e sem bons volantes, jogar num 4-4-2 se torna impraticável.
Creio que nós precisamos rever o modo com que formamos jogadores, ou veremos cada vez mais times brasileiros deficientes taticamente, indo contra a tendência do futebol mundial. (Raul Chiliani)

 

- O 4-2-3-1 no Brasil, ao contrário da Europa, nasceu no recuo dos pontas para marcar. Na Europa, foi um atacante que recuou e alinhou com os wingers. Foi o atual técnico da seleção que teve a ideia desse recuo no Grêmio de 1987. Leão adaptou Elano na direita e Robinho na esquerda no Santos moleque de 2002, e Mano Menezes oficializou em 2007, no Grêmio. Essa história mostra o porquê de não termos “wingers” no Brasil, e sim pontas incisivos que nem sempre marcam ou cercam. O desafio dos técnicos é adaptar o ímpeto ofensivo deles sem a bola, seja num posicionamento que favoreça a transição ou no cerco aos laterais.

O 4-2-3-1 é dinâmico e pode ser aplicado de várias maneiras. Marcação não significa que o meia-extremo deva dar carrinho ou acompanhar o lateral. Aliás, foi essa obrigação que prejudicou Lucas na passagem de Leão pelo tricolor paulista e Maikon Leite quando Felipão estava no alviverde. Com treinadores mais jovens e atualizados, Lucas conseguiu bom futebol sem voltar acompanhando o lateral, mas com bom posicionamento para o contra-ataque. Maikon Leite ganhou chances com Kleina e é líder de assistências para Barcos. São atacantes sem o dom de marcar, mas dentro do esquema, meias que levam a bola, cruzam ou driblam. Ou seja, um meia-extremo bem brasileiro. (Leonardo Miranda)

 

- O 4-2-3-1, esquema da moda, pode ser sim, visto como alternativa. Desde que seja trabalhado desde a base. No Brasil os esquemas pendem para o lado efêmero. Se não der logo certo, tudo muda.

O esquema “obriga” que tenhamos autênticos pontas com a incumbência de atacar e recompor na hora da marcação. O ato falho está justamente na recomposição. No Brasil é muito difícil encontrar um jogador que saiba fazer a leitura do jogo. Isso dificulta as ações dentro de campo. Para ser este ponta o jogador precisa, também, ser versátil. Os pontas podem ser armadores que centralizam e abrem espaço p que o meia central caia pelos lados. Alternativas de jogo. Algo que não vejo em grande escala no Brasil. Salvo alguns esquemas. O que mais me chama a atenção, sem dúvidas, é o Corinthians. Simetria perfeita.

O meia central, organizador, camisa 10, Box-to-box, número 1 está quase em extinção. Essa função não está restrita apenas a armação de jogadas. É preciso ser incisivo, chegar em gol, entrar na área e incomodar os zagueiros. Ficar paradão e só distribuindo bolas fará com que o jogador seja presa fácil para fortes marcações. Faz-se necessário inverter com os pontas, dando maior dinamicidade ao ataque do seu time. A dinâmica é forte e o jogador precisa assimilar isso. (Raniery Medeiros)

 

A esperança é que Felipão, assim como todos os treinadores brasileiros, entendam que cada esquema atende a preceitos de funcionamento que devem ser respeitados. Já que nosso futebol no plano tático, hodiernamente tem assumido uma posição de ter o futebol europeu como paradigma, devemos então começar da base, desde já, a formar jogadores imbuídos nessa mentalidade tática. Até lá, possivelmente viveremos uma era de compensações, outra característica cultural do nosso futebol. Abraços!

 

 

 

 

Victor Lamha de Oliveira

 

Tópico: AS DIFICULDADES DO FUTEBOL BRASILEIRO COM O ESQUEMA DA MODA

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Marcus Vinicius | 07/02/2013

Salve Victor!

Excelente texto, o comentário do Jonatan faz muito sentido, o esquema foi colocado em pauta como um esquema perfeito. É sim o esquema da moda. O que tem mesmo que acontecer são os clubes implantarem uma filosofia de trabalho, nós como o "país do futebol" não podemos ser tão empobrecidos neste aspecto.

Parabéns!



Re:.

Victor Lamha de Oliveira | 09/02/2013

Salve Marcus! Você foi cirúrgico: falta filosofia de trabalho, profissionalismo para implantar os dogmas do esquema na base e na Seleção, já que esse foi o desenho tático adotado como base pelo nosso futebol desde 2006. Já são quase 7 anos de predominância do 4-2-3-1. Abraço! Obrigado por sempre prestigiar e participar no site!

Belo texto

Raul | 04/02/2013

ótimo texto, Vitão! Parabéns!

Re:Belo texto

Victor Lamha de Oliveira | 09/02/2013

Grande Raulzito! Obrigado pelo elogio amigo! Valeu por sempre prestigiar! Abraço!

Fórmula do sucesso

Jonatan | 04/02/2013

Perfeitos o texto, a explicação e a abordagem. Mas gostaria de fazer apenas uma observação: tudo foi colocado como se o tal 4-2-3-1 fosse um esquema perfeito, como se só houvesse essa opção. E não é bem assim...

Re:Fórmula do sucesso

Victor Lamha de Oliveira | 09/02/2013

Grande Jonatan! Olha, não coloquei que o 4-2-3-1 é perfeito. Acontece que existe toda uma evolução tática durante a história, sendo o referido esquema o último degrau dessa escada. Atualmente, e com relação a composição de espaços, o 4-2-3-1 é o esquema mais indicado, além de ser mais maleável também. Rapidamente, e mudando apenas uma peça, você pode jogar no 4-3-1-2, no 4-4-1-1, no 4-1-4-1. Isso com a vantagem de marcar em linhas e poder compactar rapidamente. Mas isso não quer dizer que seja o melhor, porque cada time tem um elenco. É o material humano que vai determinar a escolha do esquema. Entretanto, se o grupo permitir a montagem de um 4-2-3-1 eficiente e equânime, vale a pena a tentativa. Principalmente pela composição de espaços. E o esquema foi abordado de forma enfática por ser o adotado pela Seleção desde a era Dunga. Abraço!

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